De mercado a rodoviária: as metamorfoses de um espaço urbano em BH


16/10/2025 - ND Mais

Por Ulisses Morato, Coluna Memória Arquitetônica de BH


Detalhe da planta de BH elaborada em 1895 por Aarão Reis, mostrando, ao centro, a Praça 14 de Fevereiro (posterior Rio Branco) com a indicação do Mercado. (Crédito: Acervo da CCNC).


O século XX foi o período da história em que observamos as mais radicais transformações em diversos campos do conhecimento, muitas delas afetando drasticamente a configuração das cidades. A paisagem urbana de Belo Horizonte, que se desenvolveu majoritariamente nesse período, é um retrato fiel desse vertiginoso processo. Em tal panorama, o local onde hoje se encontra o Terminal Rodoviário Governador Israel Pinheiro, em frente à Praça Rio Branco, é um verdadeiro repositório de memórias construtivas que revelam nossas constantes e vorazes metamorfoses urbanas.

Na planta de criação da cidade, elaborada em 1895 pelo engenheiro Aarão Reis, a Praça 14 de Fevereiro — nome que marcava a data de criação da Comissão Construtora da Nova Capital (CCNC) — posteriormente desmembrada em Praça Rio Branco e Praça do Mercado, já estava assinalada para receber o mercado da cidade no final de sua esplanada, obra que veio a ser efetivamente erguida em 1900.

Assim, em outubro daquele ano foi inaugurado o Mercado Municipal de Belo Horizonte — graciosa construção eclética inteiramente montada com peças de ferro importadas da Bélgica — que arrematava o eixo norte da Avenida Afonso Pena e as extremidades das avenidas Paraná e do Comércio (atual Av. Santos Dumont). A edificação — um belo exemplar da arquitetura do ferro no Brasil, com 48 boxes para venda de gêneros alimentícios — consolidou-se como um dos marcos construtivos da região, que não tardou a ser conhecida como Bairro do Comércio.


O primeiro Mercado Municipal de Belo Horizonte em foto de 1900. Obra localizada em frente à antiga Praça 14 de Fevereiro (atual Praça Rio Branco), inteiramente construída com peças metálicas importadas da Bélgica (Crédito: Arquivo Público Mineiro).


O “velho” mercado, como passou a ser tratado por nossa população sempre ávida por modernização, funcionou até 1928, quando suas instalações — além de depreciadas pelos cidadãos — já não comportavam a demanda de uma cidade em franco crescimento populacional. Assim, decorridos apenas 28 anos da sua inauguração, optou-se por sua demolição, selando o desaparecimento da primeira geração arquitetônica daquele lugar.

Um novo mercado foi construído no quarteirão onde se encontrava o antigo Estádio do América Futebol Clube, junto à Av. Augusto de Lima, sendo ali inaugurado em 1929 e posteriormente reformado para formatar o que hoje conhecemos como Mercado Central. Assim, no terreno do “velho” mercado abriu-se um vazio urbano para novas especulações sobre a ocupação daquela que foi uma das mais valorizadas áreas de Belo Horizonte.

Há rumores de que o antigo mercado de ferro foi reinstalado numa cidade do Sul de Minas, mas, ao certo, sabemos apenas que o coreto que existiu nas proximidades do antigo mercado foi transferido para o Parque Municipal em 1926, sendo, portanto, o único testemunho ainda existente, além das fotografias, dos primórdios da antiga Praça do Mercado.


Foto antiga do Parque Municipal. O coreto que ficava nas proximidades do “velho” Mercado Municipal foi transferido para o parque em 1926. (Crédito: Arquivo Público Mineiro / s.d.).


Vazio urbano criado, o governo estadual logo se empenhou em dar nova ocupação ao enorme terreno junto à Praça Rio Branco, que se concretizou numa monumental construção em estilo Art Déco — a Feira Permanente de Amostras. O projeto arquitetônico dessa obra foi elaborado em 1932 por dois dos mais destacados arquitetos da capital — o italiano Raffaello Berti e o mineiro ítalo-descendente Luiz Signorelli, que, além de projetistas, foram professores da Escola de Arquitetura de Belo Horizonte.


A Feira Permanente de Amostras nos anos 1940. A obra, projetada em estilo Art Déco por Berti e Signorelli e erguida junto à Praça Rio Branco, foi um marco urbano da capital. (Crédito: Biblioteca IBGE).


A Feira Permanente de Amostras, inaugurada em 1936, além de ter sido concebida para a exposição de produtos ligados às atividades extrativas, comerciais, industriais, agrícolas e pecuárias de Minas Gerais, abrigou também um restaurante, uma agência dos Correios, postos fiscais federais e estaduais, sala de cinema, entre outros. Nessa monumental edificação — erguida com estrutura de concreto armado e, à época, a segunda construção mais alta da cidade —, foi instalada, ainda em 1936, a primeira sede da Rádio Inconfidência, que ali funcionou por vários anos com seu potente transmissor PRI-3.

Com o passar dos anos, o imenso terreno da Feira de Amostras foi recebendo novas edificações, tornando-se um complexo multiuso que atendia a inúmeras demandas relevantes da população belo-horizontina. Vieram: o Ginásio Benedito Valadares, construído em 1937 nos fundos da feira, junto à Av. do Contorno, onde o Esporte Clube Paissandu treinava e disputava várias modalidades esportivas — muitas com transmissões da TV Itacolomy; o Terminal Rodoviário (um dos primeiros do Brasil), construído em 1941 ao lado do ginásio, com acesso pela Av. do Contorno; e em 1948 um novo auditório para a Rádio Inconfidência, que ficava na porção direita do terreno, entre a Feira de Amostras e o Estádio do Paissandu — como era conhecido o ginásio de cobertura curva.


O terreno em frente à Praça Rio Branco tornou-se um polo multiuso. Neste cartão-postal de 1962, vemos: (1) Feira de Amostras; (2) Terminal Rodoviário; (3) Ginásio Benedito Valadares (Paissandu); (4) Auditório da Rádio Inconfidência. (Crédito: Cartão-postal / Reprodução / Editado).


Em 5 de setembro de 1937, o jornal Folha de Minas anunciava a inauguração do ginásio poliesportivo — o mais novo ocupante do terreno da Feira de Amostras — com capacidade para receber 5.000 pessoas e preparado, inclusive, para exibições teatrais e cinematográficas:

Inaugura-se hoje o majestoso estádio da Feira de Amostras. A sua construção é toda de cimento armado e preenche fielmente a sua finalidade, pois dentro de sua arena, podem ser disputados jogos de basquete, vôlei, lutas e pugilismo. E o único do país que dispõe de adaptação para os diversos ramais de esporte a que nos referimos. E não é só. Pode ser transformado imediatamente numa luxuosa e confortável casa de diversões para representações de peças teatrais e exibição de filmes cinematográficos.


O interior do Ginásio Benedito Valadares (Paissandu) em reportagem publicada pela Revista Sport Illustrado em 15 de fevereiro de 1940. (Crédito: Arquivo da Biblioteca Nacional).


Por sua vez, em fevereiro de 1941, a mesma Folha de Minas anunciou a inauguração do primeiro Terminal Rodoviário de Belo Horizonte:

A Estação Rodoviária da Feira de Amostras será inaugurada em breve — Centralização dos Serviços de ônibus para vários pontos do estado. A parte externa voltada para a Av. do Contorno, a futura Estação Rodoviária da capital está localizada na área posterior ao recinto de diversões da Feira Permanente de Amostras, entre o estádio Benedito Valadares e a rua Acre.


O primeiro Terminal Rodoviário de BH nos anos 1940, localizado atrás da Feira de Amostras, com acesso pela Av. do Contorno (Crédito: Biblioteca IBGE).


Já o novo e amplo auditório da Rádio Inconfidência — inaugurado em 1948 junto ao edifício da Feira Permanente de Amostras e com capacidade para até 1.450 pessoas — não só vivenciou o auge dos populares programas radiofônicos de auditório, mas também foi equipado para teatro, cinema e conferências, consolidando aquele quarteirão da cidade como um polo aglutinador de atividades culturais, esportivas e de lazer.

No entanto, decorridos pouco mais de trinta anos, a Feira de Amostras e seus vizinhos seriam varridos da paisagem de BH. No fatídico início dos anos 1960 — no qual a cidade ficaria marcada, durante a gestão dos prefeitos Amintas de Barros e Jorge Carone Filho, pela supressão dos fícus da Avenida Afonso, retirada do Pirulito da Praça Sete, desativação dos Bondes elétricos e canalização do Córrego Acaba Mundo —, o governador do estado, José de Magalhães Pinto, em sintonia com os gestores municipais anunciava outra desfiguração da região central, ou seja, a demolição da Feira de Amostras.

A Folha de Minas, em maio de 1961, reportou: “Querem de novo derrubar a Feira de Amostras … a fim de que seja resolvido o problema de trânsito naquele local.” Ato contínuo, em 1965, iniciava-se a destruição de todas as construções do quarteirão junto à Praça Rio Branco para que ali se ergue-se o novo Terminal Rodoviário de Belo Horizonte.

Uma vez sacramentada a eliminação da segunda geração de construções daquele lugar, novos planos de edificação foram colocados em andamento pelo Estado. Inicialmente, os arquitetos Francisco José do Espírito Santo, Raul Costa da Cunha e Ronaldo Masotti Gontijo, do Departamento Estadual de Estradas de Rodagem (DER-MG), propuseram uma arquitetura de vultosa escala, inspirada nas grandes obras da recém-construída Brasília.

Em outubro de 1964, o jornal Diário da Tarde assim anunciava o projeto da nova rodoviária de BH: “A obra, que é também um monumento arrojado e ultra moderno, prevê a estação, propriamente dita, rampas colossais para acesso de veículos e dois blocos de 30 andares, ocupando uma área de vinte e sete mil metros quadrados.” O projeto previa ainda a criação de um complexo viário no final do Bairro Lagoinha que passaria sobre o terminal, entre as duas torres, e desembocaria na Avenida Afonso Pena.


Maquete do Terminal Rodoviário de BH (1964) e o seu complexo viário no B. Lagoinha. O terminal ocuparia o terreno da antiga Feira de Amostras, em frente à Praça Rio Branco. (Crédito: Diário da Tarde / Hemeroteca do Estado de Minas Gerais).

Maquete do Terminal Rodoviário de BH (1969), conforme projeto elaborado pela arquiteta Suzy de Mello e equipe, que se concretizou junto à Praça Rio Branco. (Crédito: Arquivo Público Mineiro).


A megaestrutura proposta pelos arquitetos do DER-MG não vingou, muito provavelmente por questões orçamentárias, e o Estado tratou de conduzir a realização de outro projeto arquitetônico, mais ajustado a todos os critérios pretendidos. Por meio de concorrência pública, uma nova proposta foi desenhada por uma equipe de arquitetos, da qual se destacava a ilustre professora Suzy de Mello, contando ainda com Fernando Graça, Luciano Passini, Mardônio Guimarães, Marina Wasner, Mário Berti e Walter Machado. Integraram também essa equipe os arquitetos do DER-MG que desenvolveram a primeira versão do projeto, em 1964: Francisco Espírito Santo, Raul Costa da Cunha e Ronaldo Masotti.

Mesmo sendo uma proposta mais horizontalizada, comparativamente à anterior, o projeto modernista da nova rodoviária, elaborado por Suzy de Mello e equipe, foi considerado, após sua construção entre 1969 e 1971, o maior equipamento do gênero da América Latina. Sua arquitetura segue a corrente brutalista, na qual as estruturas de concreto aparente são protagonistas estéticos e funcionais das obras.

Em 1994, por sua relevância histórica e arquitetônica, o Terminal Rodoviário Governador Israel Pinheiro foi tombado pelo Conselho Deliberativo do Patrimônio Cultural de Belo Horizonte (CDPCM-BH). A partir desse ato administrativo, portanto, a terceira geração de obras junto à Praça Rio Branco ficou protegida de novas incursões demolidoras.


O Terminal Rodoviário Governador Israel Pinheiro, inaugurado em 1971 e projetado pela arquiteta Suzy de Mello e equipe, tornou-se patrimônio cultural do município em 1994. (Crédito: Cartão-postal, anos 1970 / Reprodução).


Editado por: Ulisses Morato

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